Cozinha

Aquilo foi tudo muito estranho. Eu ia jurar, que por momentos, o seu olhar era tão vazio e de peno pânico, quase como que se ela não me conseguisse ver à sua frente. Olhei-a preocupado e nada satisfeito com a sua resposta e tentativa de mudar de conversa - Não me parecia tudo bem, não senhora - Contrapus - Sabes que me podes contar tudo, não sabes Felly? - Só deixei de pensar naquilo quando ela falou comigo. Ai, a comida! Apressei-me a chegar ao fogão e apaguei logo as coisas. Felizmente, nada parecia queimado, embora já não tivesse um aspeto delicioso como há pouco.

Na verdade eu nunca tinha contado pormenorizadamente o acidente. Nem à sua mãe, nem a ele, nem sequer aos médicos e enfermeiros que me foram assistindo no hospital. Eu nunca falei com ninguém sobre isso. Tinha muitas vezes pesadelos com aquele momento, e o problema é que não eram meros pesadelos, mas sim memórias vivas. Suspirei e deixei que ele tratasse do comer, antes que aquilo ficasse realmente tudo torrado e ninguém comesse. Depois de um suspiro, eu acabei por começar a falar.
- Eu estava só... Não sei, era uma memória má. Do acidente. - Apenas disse, não sabendo se havia ou conseguia prosseguir.

Tirei as coisas do lume e comecei a empratar. Para aquilo é que eu tinha algum jeito. Sempre me dera bem com o design das coisas. Estava quase tudo pronto para começarmos a jantar.
- Do acidente... - Ela nunca me contara muito sobre isso e eu nunca perguntara. Achara melhor não o fazer - Queres falar disso?

O prato com a comida excelentemente posta arrancou-me um pequeno e doce sorriso, que infelizmente não durou muito mais de uns meros segundos. Molhei os meus lábios e mantive o rosto baixo. O acidente que tive no Ferrari é algo que ainda hoje me atormenta, mais do que eu consigo admitir. - Eu não sei, amor... O melhor é comermos antes que arrefeça. Esforçaste-te muito para me dares um prato lindo e certamente saboroso. - Encarei-o finalmente e sorri-lhe, ainda sendo meio forçado.

Levei o resto das coisas para ali perto. Comeríamos ali menos no balcão. Achava que ela não se importaria. Depois de ter levados os copos, bebidas e talheres, levei os pratos e sentei-me ao lado dela. Odiava vê-la cabisbaixa.
- Não faças isso comigo. Fingir que estás bem - Eu já a conhecia bem - Se não quiseres, não falamos. Mas não te feches para mim, Felly. Por favor. 

- Oh, amor... - Murmurei, já num tom de voz fraco por ter praticamente os olhos inundados em lágrimas. Já não o estava a olhar outra vez, limitava-me a olhar para a comida que tinha um aspeto delicioso. Mesmo assim acabei por me levantar e aproximar-me mais dele, que estava sentado ali ao lado e abracei-o com toda a força que me restava depois de um dia cansado como aquele. - Foi... Tão horrível. - Comecei por dizer, recuperando o fôlego que perdera mais depressa que o normal, por causa do choro. - Fazes a mínima ideia do quão depressa aquele carro se desfaz...? Eu comecei a ver a minha a passar-me toda à frente dos olhos. A última coisa que nós fizemos foi discutir... A última coisa que eu disse ao meu menino doentinho foi que ia buscar o pai... E a ti... Pedi-te que não me tocasses. - Limpei rapidamente as lágrimas e continuei. - Eu... Eu pensei que ia morrer, eu sentia que ia morrer.

Detestei-me por ter dito aquilo tudo e vê-la chorar. Odiava ver lágrimas na sua cara, ainda para mais sabendo que foram causadas por mim. Mas tu nunca aprendes, Mikko Sullivan? 
Contudo, por um lado estava satisfeito pois aquilo fê-la falar. Era horrível recordar aquele acidente, mas eventualmente teríamos de o fazer - Eu lamento tanto Felly. Nunca conseguirei por em palavras o quanto lamento. Se eu não tivesse sido um cabrão...

- A culpa não é tua...- Suspirei e voltei a encostar-me a ele, deixando-me chorar mais um pouco. - Eu pensei que nunca mais vos ia ver... Sentia-me tão... Nem sei. Tinha dores em tudo o que era sítio, e sentia-me a perder as forças. Tudo o que eu queria era ter-te lá comigo, dizer-te que te amo e pedir-te que tomasses conta do nosso menino e que lhe dissesses que o amo... Eu queria... Nem sei. Eu não queria morrer e a minha alma já estava a abandonar o meu corpo. Eu estava no meio de toda aquela tralha. - Limpei novamente as lágrimas e abracei-o com força. - Não consigo esquecer aquilo... É horrível, mas não me sai da cabeça. E eu fico-te tão agradecida por não me teres deixado comprar outro casso igual...

A culpa era minha. Toda minha. Eu ainda não me perdoara a mim mesmo, embora Felice já me tivesse perdoado. - A minha vida não teria feito sentido se tivesses morrido naquele acidente. O nosso filho vai ter a mãe até muito tempo, eu vou ter a minha companheira até morrer. - Era assim que tinha de ser. - Nunca mais. Adorei aquele carro enquanto o tive, mas não voltaria a querer um igual. O que me lembra de te dizer que já encomendei o R8.

Ouvi-lo dizer aquilo... Ouvi-lo dizer que me queria ao seu lado até morrer... Fez-me chorar ainda mais. Escondi o meu rosto no seu pescoço e depositei um beijinho no mesmo. - Eu amo-te tanto, Mikko. Eu estou tão grata por tudo... Tão grata por te ter comigo. Tivemos os nossos altos e baixos, mas tu nunca me deixaste. Tu continuas aqui comigo, connosco. Tu fazes tanto pela nossa família, pelo nosso menino, pelo bebé está para vir... E por mim. - Falei, enquanto o encarava. Sorri-lhe docemente e dei-lhe um beijinho. - E eu não preciso de de um casamento, não preciso de um papel ou de uma cerimónia. Eu já tenho tudo o que me faz feliz. Eu amo-te tanto...

Ela continuava a chorar e eu continuava sem saber o que fazer para o parar - Não chores, Felice - Pedi. Não tinha sido anda assim que imaginara a nossa noite. Finalmente as suas lágrimas acalmaram depois daquela declaração de amor que me tranquilizou um pouco, embora eu não me achasse tão bom quanto ela fazia querer. Eu devia ser melhor para todos. - Mas eu quero dar-te tudo, a seu tempo. Também te amo, meu amor - Sorri mais confiante - E o que me dizes de começarmos a comer? Daqui a pouco isto está frio e eu passo por péssimo cozinheiro.

O seu pedido era quase uma súplica. Eu sei o quanto ele detesta ver-me chorar, porque fica sempre aflito e sem saber como me reconfortar, como me fazer parar de chorar e voltar a demonstrar o meu sorriso que ele tanto adora. Deixei-me, primeiramente, ficar no seu conforto enquanto me acalmava. Tinha uma pequena dor no ventre, e apercebi-me que não podia estar a passar por emoções tão... Fortes. Mesmo sabendo que fazem parte do passado, e só do passado. Suspirei e respirei fundo quando já estava mais calma e ri baixinho. - O cozinheiro já passou por bom só pelo seu lindo aspeto. - Meti-me com ele, olhando para a cadeira. - Posso comer mais pertinho de ti? Estou com medo até de pegar ou puxar a cadeira... - Murmurei, acariciando o ventre com calma.

Fiquei mais tranquilo assim que o ambiente desanuviou. Não gostava que o nosso passado pesasse sobre nós, mas era inevitável. 
- Então mesmo que a comida não preste, eu já tenho boa nota - Soltei uma gargalhada. - Claro que sim, tola - Aproximei eu a minha cadeira para que ficasse mais próxima da dela - Mas estás a sentir-me mal? - Perguntei preocupado.

- É óbvio, amor. Mesmo que me desses só uma sandes para as mãos, já te chamava de bom cozinheiro. - Ri, fazendo uma careta depois enquanto abanava a cabeça, negativamente. - Não, não é "sentir-me mal"... É só uma dorzinha no ventre, mas passa amor. É do cansaço e das emoções fortes. - Esbocei-lhe um pequeno sorriso e sentei-me então na cadeira, agora mais próxima da sua, e ousei em colocar, com cuidado, as minhas pernas no seu colo. Pousei uma das mãos na barriguinha enquanto que, com a outra, segurava no garfo e começava agora a comer. Arregalei os olhos quando senti o sabor da comida e olhei-o. - Mikko Sullivan, isto está divinal! Mas que raio?! Dizes-me que não sabes cozinhar e sais-me com isto? Andas a enganar-me! - Brinquei com ele, batendo-lhe ao de leve no braço.

- Isso até é um elogio, mas espero que a comida que faço esteja realmente saborosa. - Só queria provar o meu valor desta vez. 
- Tens a certeza disso? - Questionei, ainda preocupado - Se as dores se tornarem permanentes ou mais fortes levo-te ao medico. Por isso avisa-me, sim? - Queria uma resposta. Paralisei. Passei a mão pelas suas pernas sexys. Agora não ia conseguir comer sem tirar alguns pensamentos indecentes da minha cabeça... - Não sei se realmente é assim ou não, mas que posso dizer? I'm a natural. 

- Sim paizinho, não te preocupes que eu aviso. Prometo! - Sorri-lhe docemente e continuei a comer, sorrindo enquanto sentia a sua mão pelas minhas pernas. - Parece-me que sim... Isto está mesmo bom! Mas, se fazes o favor, come também. Não tarda esfria e depois o cozinheiro fica chateado... - Brinquei, remexendo as pernas levemente enquanto o olhava discretamente. - Eu nem preciso de te perguntar o que estás para aí a pensar ou a magicar, a tua expressão diz tudo, amor.

Foi a minha vez de saborear pela primeira vez algo feito por mim. Fiquei surpreendido com os meus dotes culinários. O jantar estava comestível.  - Tens razão, isto está mesmo bom. Tão bom quanto eu próprio - Aquela dica era para ela mesmo. - Sou assim tão fácil de ler? Deixas-me louco. Mas hoje não vai haver ação para nós...tens de descansar.

- Não, não, não. - Abanei a cabeça. - Nada se compara ao Mikko Sullivan. Ao MEU Mikko Sullivan. - Frisei bem o determinante possessivo, largando um dos talheres entretanto para acariciar o rosto do meu namorado. - Eu sei... Mas isso deixa-me meio triste. Sei lá, mereces uma diversãozinha que só eu te sei e posso dar e eu não posso fazê-lo. - Suspirei e encolhi os ombros. - Sinto-me, ahm... - Menos mulher? - Não sei explicar amor. - Ri baixinho e voltei a comer.

- Não é culpa, amor. - Disse logo, terminando de comer entretanto. - É só que eu também quero fazer amor com o meu marido e não posso... - Encolhi os ombros e passei o dedo pelo prato para conseguir saborear o que restava. Lambi e chupei o dedo, olhando-o. - Vais ter de começar a cozinhar mais vezes para mim. Para "mim" não, para nós. Agora tens de aturar duas meninas. - Sorri toda contente e depois fiz uma careta. - Bem, eu não sei se é menina, mas é amanhã que vamos descobrir. A consulta é lá mais para o final da tarde, por isso podemos almoçar com os teus pais à vontade. Já passou muito tempo desde a última vez que a vimos. Tanto tempo que eu até já tenho uma barriga que se nota demasiado e tudo. - Ri baixinho e levantei-me para ir lavar a loiça. Era o hábito. Virei-me para ele ainda com o prato na mão e sorri. - Vens amanhã ver o ou a bebé, não vens amor? Ai de ti que digas que tens uma reunião, eu própria a desmarco se ela existir! - Brinquei.

- Vais ser o meu chef de cozinha assim só de vez em quando. - Ri, assentindo. - Eu tenho quase a certeza que é uma menina, eu sinto-o! - Disse, muito convicta. Acabei por lhe dar o prato para as mãos antes que aquela careta piorasse e suspirei. - Eu sei, mas estou habituada a tratar das coisas e pronto... E acho mesmo bem que desmarques essa reunião, senão desmarco-a eu e nem estou sequer a brincar. Se eu amanhã te ouvir dizer, depois do almoço, que tens de voltar ao college, eu fodo-te. - Falei muito séria, apercebendo-me depois do que dissera. Comecei a rir-me e abanei a cabeça. - Até o fazia, de muito bom agrado. - Gargalhei e dei-lhe um beijinho na bochecha. - Ouviste? O pai vai amanhã connosco. - Falei, toda muito entusiasmada, para a minha barriga enquanto a acariciava. Depois olhei para o relógio e suspirei. - Amor, se não te importas... Acho que vou tomar um duche e preparar-me para me enfiar na cama. Doem-me as coisas...

Recebi os eu prato e juntei-o ao meu. Abri a máquina de lavar a loiça e fui lá colocando os pratos, talheres e copos, para além das outras coisas sujas. Dei a tarefa por terminada e finalmente pude estar tranquilo para falar com ela à vontade. Logo, a minha careta desapareceu.
E deu lugar a um sorriso divertido devido à linguagem dela - Sou capaz de ter de voltar ao colégio depois do almoço, mas para algo rápido ... - no entanto, o olhar de Felice fez-me perceber que era melhor mudar de ideias - Ou então não. - Tiro folga pela tarde. Se bem que o castigo não me aprece mau de todo. - Estaria sempre disponível para ser fodido por ela. - Sim, fazes bem. Eu vou só ver umas coisas no computador mas depois subo e faço-te companhia. E que tal uma massagem pelas mãos do infame Mikko Sullivan? Adormecias muito bem.

- Vais ao colégio o caralho! - Disse-lhe logo, tentando armar-me em séria e durona mas foi difícil porque desatei logo a rir. - Epá, isso parece-me uma excelente ideia! Massagens com essas mãos de anjo nunca são em demasia! - Aproximei-me dele e beijei-o apaixonadamente. - Vê se não te distrais com o computador e me deixas à espera demasiado tempo. - Pedi, depositando-lhe um beijo na bochecha. Depois deixei-o ir fazer as suas coisas e deixei-me ficar pela cozinha. Bebi um pouco de água e petisquei um doce qualquer, seguindo então para as escadas. Ao início estava tudo às mil maravilhas, mas quando cheguei a meio... - Mikko... Mikko...! - Tentei chamar por ele, mas não muito alto para não acordar o menino que estava no seu quarto a dormir. - Mikko, por amor de deus larga o computador e vem a correr para as escadas. - Pedi de novo, segurando-me ao corrimão das escadas para não cair. Sentia alguma pressão no ventre, que me doía, e sentia as minhas costas presas. Ah, miúda, colabora com a mãe, por favor.

Alguém estava mesmo de ideias fixas esta noite. Já estava a entender que não ia a lado nenhum depois do almoço em família sem ser à consulta com ela - Está bem, rendo-me. Tiro folga a tarde toda - Assegurei.
Sabia que a ideia da massagem a ia conquistar. Sorri - Sabia que não ias resistir à ideia - Disse com um sorriso convencido. Abanei a cabeça como que dizendo que isso não ia acontecer - Vinte minutos no máximo. Espera por mim no quarto, voltarei em breve - Prometi. Era certo que às vezes me distraía com o tempo quando estava no computador. Felizmente, não estava assim tão distraído pois ouvi-a chamar-me embora ela não o tivesse feito muito alto. Devia ter ido mais rápido pois assim que vi a expressão de Felice percebi que se passava algo errado. Aproxime-me dela de imediato e apoie-a - O que é que se está a passar?