Ruas

Pelo menos ela continuava de acordo em seguir com o aborto. Ainda bem.
Mordisquei o lábio - E estou furioso - mas era principalmente comigo, por ter deixado uma coisa assim acontecer.  Até que me lembrei que ela já dormira com outro gajo. O bebé podia nem ser meu. Ah, aí é que fiquei furioso.

- Porque é que estás assim? Eu não te fiz nada de mal, não fiz o bebé sozinha.. - Murmurei, coçando depois o braço - O que se passa? - Perguntei ao vê-lo cerrar os punhos. Fiquei um bocado assustada ao vê-lo assim

- Estou assim porque não acredito nisto... Estou furioso com a situação - E um bocadinho com ela e bastante comigo. Sentia-me assim. - No que diz respeito a nós, usámos praticamente sempre protecção. Fizeste o mesmo quando dormiste com o outro? - disse o outro entre dentes cerrados.

Franzi o sobrolho. Ah, o outro, a rapidinha com o outro para me vingar dele quando esteve com a outra - Sim, houve protecção - Afirmei logo de seguida. Afastei-me ligeiramente, na cama. Nunca o tinha visto assim e tinha a sensação que a qualquer momento ele ia explodir. A minha respiração estava um pouco acelerada, devido ao medo - Eu só fiz sem protecção contigo, só contigo - Assegurei-lhe

Merda. Eu estava com vontade de esmurrar alguém só de pensar que ela dormira com outro e que a culpa disto tudo era minha, por não ter usado a porcaria de um preservativo uma vez ou outra.
Afastei-me da cama e levei as mãos à cabeça, tentando raciocinar coerentemente.

Voltei a colocar-me bem na cama, ficando no centro da mesma. ele estava para lá de furioso, e o melhor é eu nem dizer nada. Eu estava assustada e nervosa. E amanhã, eu vou.. Tirar isto de mim. Ficar calma? Como é que é possível eu ficar calma numa altura destas? Deitei-me melhor, de forma a conseguir observá-lo. As dores intensas no fundo da barriga voltaram, mas eu não disse nada. Apenas me contorci e fiz força com a mão naquela área

Não gostava nada daquela situação nem ela parecia gostar. Odiava tudo isto por estar a afetar a relação entre nós os dois. Eu nem sentia vontade de beijá-la e isso nunca acontecera antes - Vou até à cafetaria do hospital. Queres alguma coisa?

- Não, obrigado.. Eu estou bem - Disse-lhe, tentando parecer o mais normal possível. Sussurrei um amo-te mesmo antes de ele ir e quando saiu eu voltei a contorcer-me. Sentei-me inclinei-me para a frente, resmungando com as dores

Pelo menos perguntara. Saí do quarto com um ligeiro aceno de cabeça. Fui até à cafetaria do hospital. Não tinha fome. Apetecia-me beber, fumar uma ganza ou snifar um pouco de coca. Isso sim, vinha mesmo a calhar. Acabei por pedir apenas um café. Ao invés de ir logo para o quarto, permaneci ali. Não queria voltar já para aquele ambiente estranho entre mim e Felice.

E agora estou sozinha e não tenho a quem pedir ajuda. Boa Felice, és mesmo idiota. Não sabes pedir ajuda quando tens oportunidade para tal? Agarrei-me às barras da cama e tentei baixar as do meu lado direito para sair dali. Tinha de pedir ajuda. Até fazer aqui parecia complicado, e aqueles fios todos espetados em mim não ajudavam. tentei forçar aquilo ao máximo e lá consegui, saindo depois da cama. Tirei aqueles fios de mim uma vez mais. Tentei caminhar até à porta, mas só cheguei até aos pés da cama. Agarrei-me às barras da mesma e choramingava ao sentir as dores a intensificarem-se. Eu sentia vontade de fazer força e não compreendia. Sentia que devia de obedecer a essa vontade. Estava com imensas dores e ninguém estava ali para me auxiliar. Tentei gritar por ajuda mas ninguém vinha. Eu continuei agarrada àquelas barras da cama, olhando para baixo, vendo aquela camisa de hospital nojenta que me cobria o corpo. E eu decidi fazer força, decidi obedecer a essa vontade para ver se as dores aliviavam. Quando olhei o chão apercebi-me que estava a sangrar novamente. Continuei aos gritos e a choramingar devido às dores, na tentativa de alguém me vir ajudar

Quando terminei de beber o meu café e achei que era altura para voltar (mesmo que não quisesse), levantei-me e segui calmamente de volta para o quarto. Quando estava quase a chegar lá, vi a média e uma enfermeira correrem para a porta do quarto de Felice. Que raios? Corri também e quando entrei no quarto, fiquei prestes a entrar em pânico. Lá estava Felly no chão, com a bata suja de sangue a pedir ajuda - Felly... - não me aproximei porque a médica já estava a chamar reforços. Não sabia o que fazer.

A médica dizia várias vezes a Mikko para sair dali, mas ele simplesmente recusava-se a fazê-lo e tentava manter-se o mais próximo possível. Eu queixava-me e gritava com tantas dores. Eu sabia que um parto era doloroso, mas não sabia que um aborto era igualmente doloroso. Se calhar podia até ser pior. Eu ouvia a médica a dizer para eu respirar fundo, e a vontade que eu tinha era quase de a mandar para outro lado. Tinha de obedecer àquela vontade de continuar a fazer força, para expulsar aquilo de mim. E era isso que eu estava a fazer, mas quase que involuntariamente. Já me sentia meio zonza e sem forças. Via tudo à roda e meio turvo. - Chama de imediato o Doutor Quaid, estamos a perdê-la. E ajudem-em a metê-la na cama - Lembro-me de levantar a cabeça e ver sangue por todo o lado. Mas depois deixei a cabeça cair e acabei por ceder. Senti que pegaram em mim e me meteram na cama. Depois disso, não me lembro de mais nada.
Os médicos fizeram tudo o que estava ao alcance deles para eu não partir mesmo. E conseguiram. Eu, Felice, estava novamente ligada a máquinas, mas agora num estado mais crítico. A médica regressara, e dirigiu-se a Mikko.
- Como sabe, a sua namorada... Perdeu o bebé. - Afirmou séria e lamentou-se baixinho. - Ela agora tem de descansar. Esperamos que durma toda a noite, e só deve de acordar amanhã. Deseja ficar aqui? Quer que lhe traga alguma comida?

Aconteceu tudo tão rápido. Num minuto eu estava a vê-la no outro já estava expulso do quarto. Odiava ser deixado às cegas, especialmente no que dizia respeito a Felice. Estava em nervos e em pânico, à espera de noticias. Ela tem de estar bem. Ela tem de estar bem. Ela tem de estar bem. Por favor, ela tem de estar bem.
Recompus-me, ou pelo menos tentei fazê-lo, quando a médica regressou. Pelo menos ela estava viva. - Obrigada por me informar, doutora. Vou ficar com ela, aqui. - agradeci mais uma vez e entrei no quarto. Felice estava a dormir. Estava pálida e não tinha bom ar. É tudo culpa minha.

Comecei a acordar lentamente. Mexi as mãos e comecei a abrir os olhos devagar. Ainda estava tudo um bocado turvo como da última vez que me lembro. Quando levantei o braço para esfregar os olhos, percebi que estava outra vez ligada a fios. Mas agora eram mais. Tudo me doía, especialmente as partes baixas. Estavam para lá de doridas, nem dava para explicar. Levantei um pouco a cabeça e vi alguém. Estava escuro ali, mas a persiana estava aberta e o luar dava alguma claridade ao quarto - Amor..? Mikko? - Chamei baixinho, voltando a deitar a cabeça na almofada

Passaram-se algumas horas desde que voltara a entrar no quarto. Fiquei sempre ao lado de Felice, sentando num cadeirão ao lado da cama dela. Apertei a mão dela - Sou eu, Felly. Descansa.

Bocejei e remexi-me cuidadosamente na cama, virei-me para o seu lado, devagar e apertei ligeiramente a sua mão - Não me apetece descansar mais.. - Disse baixinho, olhando-o

Apesar de estar algo cansado, não pregara olho enquanto ali estivera. Ficara à espera de Felice acordar. - Mas deves descansar. Ordens da médica. Vou chamá-la, agora que já estás apta para ser examinada.

- Espera - Pedi, apertando-lhe um pouco mais a mão - Fica comigo um bocadinho.. - Murmurei, acariciando a sua mão - Não me lembro de muita coisa depois de estar no chão..

Eu não era a melhor pessoa para lhe contar o que acontecera e também não tinha a certeza de querer ser - prometo que ficamos sozinhos depois da médica vir. Agora quero mesmo que se certifiquem que estás bem - respondi num tom preocupado e fui chamar a médica.

- Está bem amor.. - Murmurei e senti-o largar-me, indo então chamar a médica. Fiquei à espera que regressasse com ela. Sinto-me tão cansada e dorida

Saí do quarto por breves momentos. Não queria deixar Felice sozinha do quarto, não depois do que acontecera. A média felizmente estava disponível e entrou logo de seguida.

Suspirei e mordi o lábio assim que a vi. Tentei recostar-me melhor na cama de hospital, mas senti logo a mão quente da médica a tocar a minha - Deixa-te estar, não é preciso te sentares. Eu não vou ficar aqui com grandes conversas e rodeios. Provavelmente não te lembras de grande parte do que aconteceu, o que é normal. Bem, tu... - Ela suspirou e segurou a minha mão - Perdeste o teu bebé. E ias morrendo, Felice - Afirmou calmamente, olhando a minha reacção.
Eu respirei fundo e mordi o lábio, tentando não chorar. Mas as lágrimas acabaram por cair. Rapidamente as limpei. - Vou só examinar-te rapidamente. Como te sentes?
- Tudo me dói, especialmente lá em baixo. De resto, sinto-me fraca. - Disse enquanto ela me examinava
- O normal.. Se te sentires pior, chamem-me.. Tenta descansar mais, sim? Boa noite - - Desejou, e depois saiu.

Não gostei nada da expressão de Felice quando ouviu as noticias. Quando a médica saiu, eu aproximei-me devagarinho da cama, olhando-a. - É tudo culpa minha, tudo isto. Desculpa-me Felly - lamentei baixinho.

- Não é nada amor. Não é.. Shh.. - Murmurei, estendendo-lhe os braços. Precisava do seu carinho, dos seus mimos, dos seus abraços e beijos.. Eu voltei a chorar sem conseguir evitar - Eu amo-te.. - Sussurrei, limpando as lágrimas

Era sim, a culpa era minha. Podíamos não estar ali, ela podia não ter passado por isto se eu tivesse tido mais cuidado. A magoar uma pessoa que amava era simplesmente... horrível. Sentia-me tão culpado. - Também te amo, Felly - acabei por responder de volta apesar de estar abalado depois de toda aquela experiências.